A Contratransferência : uma visão junguiana

A psicologia analítica é, antes de tudo, uma abordagem psicoterapêutica. É bem verdade que os estudos junguianos se desenvolveram ampliando os horizontes teóricos e práticos para além das quatro paredes do consultório ou da clínica individual, mas sua essência é baseada na atitude clínica.

O encontro analítico se desenrola num contexto que é descrito como a relação transferencial-contratransferencial que abarca a dinâmica consciente-inconsciente na interrelação contínua da psique do terapeuta e do paciente. Uma metáfora possível é o vaso alquimico, onde as transformações podem ocorrer de modo seguro.

Apesar de Jung ter dado contribuiões importantes à compreensão da relação transferêncial, esta se tornou secundária, devido a certa ambivalência em alguns textos de Jung acerca da transferência. Contudo, em relação à contratransferência, Jung pouco se manifestou diretamente, embora, não possamos ignorar que a exigência da analíse didática foi uma das contribuições indiretas de Jung à temática da contratransferência.

No texto que publiquei A Transferência na Psicologia Analítica pt2/2 eu comentei alguns aspectos gerais da transferência enfocando as categorias apontadas por Michael Fordham como possíveis formas e manifestações da contratransferência. Gostaria de ampliar a discussão iniciada naquele texto.

Um diálogo profundo

A contratransferência é um processo natural que se desenvolve em qualquer relação de cuidado, contudo, necessita de uma atitude ativa do analista para se tornar um instrumento terapêutico. A relação transferencial (isto é, da transferência e constratransferência) não aparece explicidamente na obra de Jung, apesar de uma de suas mais conhecidas frases expressar justamente a relação transferêncial.

O encontro de duas personalidades é como a mistura de duas substâncias químicas diferentes: no caso de se dar uma reação, ambas se transformam.”

(Jung, A prática da psicoterapia , p. 68)

São três aspectos importantes: duas personalidades (psicoterapeuta e paciente) e a reação. A reação é o estabelecimento do campo ou relação transferêncial – que transforma o paciente na medida que em transfere aspectos inconscientes de sua personalidade para o psicoterapeuta e introjeta aspectos da personalidade do analista em si mesmo. Por outro lado, o analista se transforma com os conteúdos transferidos/introjetados do paciente, como forma de aglutinar, elaborar e de catalisar os processos do paciente.

Na contratransferência o conteúdo inconsciente introjetado, ora percebido como afeto, ora como sensação, é transformado em comunicação simbólica pela atitude analítica. Pela dialética interior se apercebe esse movimento o que possibilita que esse conteúdo contido pelo analista possa ganhar forma e ser devolvido pelo analista ao paciente na forma de interpretação. Fordham comenta,

a introjeção útil ocorre enquanto se ouve o paciente e, se mantido [o objeto introjetado] à distância do ego do analista, fornece material através da qual a interpretação pode ser formulada. Então a dialética interna pode ocorrer e se o analista puder projetar a si-mesmo, e particularmente as partes infantis, no paciente e combina-las com conhecimento adquirido com o paciente, pode resultar uma interpretação válida. A parte interna da dialética pode ser quase instantânea ou demorada, mas requer uma projeção antes que a interpretação efetiva possa ser feita. (Fordham, 1974, p. 278,)

A dialética interior é descrita por Fordham como similar a imaginação ativa, mas por ser relacionada aos conteúdos ativados pela transferência. A síntese obtida pelas reações contratransferenciais, não podem ser avaliadas como algo pessoal, como produto da psique pessoal no analista, mas como uma produção compartilhada, que só pode ser compreendida à luz da psique do paciente – e por isso deve elaborada simbolicamente e devolvida ao paciente como interpretação ou como imagens simbólicas para ser trabalhadas como visão imaginal, como propõe Schwartz-Salant .

Tipos e varições

A classificação da contratransferência é apensas uma forma de visualisarmos, em linhas gerais, a possibilidade de manifestação. O que define de fato é a postura do analista e sua capacidade analisar suas próprias reações diante da contratransferência ou da contrarresistência desenvolvida no processo. No texto já citado, A transferência na psicologia analítica pt.2/2 eu discuti outras formas de transferências mais específicas. Aqui gostaria de focar em duas:

Contratransferência Verdadeira, sintônica ou útil – É o processo descrito acima na dialética interior, se refere ao aspecto positivo, criativo e saudável da transferência. Que permite ao analista se conectar, compreender e integrar conteúdos do paciente de forma tranquila.

Contratransferência neurótica ou ilusória – Ocorre quando o analista se identifica com os conteúdos do paciente ou com os próprios conteúdos ativados pelo paciente. Nesse aspecto o analista pode atuar ou responder ao paciente de acordo com seus próprios conteúdos (ou neurose ou necessidade) sem que estas favoreçam ou tragam benefícios reais ao paciente. Podemos pensar nesse sentido o aspecto do poder descrito pelo Guggenbul-Craig, quando se refere a sombra do analista em sua obra O abuso do Poder.

A contratransferência pode se dar de forma sutil ou aguda. Quando ocorre de forma sutil, ao longo das sessões o analista pode não se aperceber dos afetos brandos que vão se manifestando como simpatia, interesse, incômodo que não perturbam a relação mas colorem de diversas formas a percepção do analista. Em sua forma aguda, ou seja um rompante de tédio, raiva, ou sensação fisica durante a sessão, tende a chamar mais atenção, fazendo que o analista perceba de uma forma mais clara.

Duas formas de contratranferência que valem a pena comentar são a contratransferência erótica e a agressiva. Em todo caso, elas podem ser sintônicas ou ilusórias dependendo de como o analista lidou com sua experiência.

A respeito da contratransferência erótica Steinberg (1992) enumera alguns fatores que podem se relacionar ou desencadear a resposta sexual do analista. São eles:

  1. Compensação de uma relação insatisfatória entre analista e paciente.
  2. Sentimentos sexuais podem indicar uma carência sexual pessoal do analista.
  3. Pode se relacionar com a neurose própria do analista.
  4. Pode se relacionar com uma conduta sedutora do paciente de forma consciente ou inconsciente.
  5. Pode ser relacionar a uma percepção inconsciente da sexualidade reprimida do paciente.
  6. Pode ser uma concretização de um evento simbólico.

Do mesmo modo, Steinberg (1992) sugere algumas pistas para compreendermos a contratransferência agressiva. Segundo ele a contratransferência agressiva:

  1. Pode indicar o medo do paciente em estar numa relação de intimidade ou amor.
  2. Pode indicar sentimentos de raiva reprimida no paciente que este não reconhece conscientemente ou teme em expressar diretamente.
  3. Pode ser expressão da própria contratransferência neurótica.
  4. Pode indicar a introjeção de várias estruturas da personalidade do paciente (contratransferência delusiva).
  5. Pode indicar possíveis desenvolvimentos futuros do paciente ainda não perceptíveis a este.

A percepção dos sentimentos, pensamentos e sonhos de fundo erótico devem ser analisados pelo analista à luz da relação com o paciente, e caso o analista tenha dificildade de compreensão, deve procurar supervisão. Vale dizer que seria importante que o supervisor e analista pessoal sejam pessoas diferentes.

É muito importante compreender as feridas do analista ou ganchos presentes que sustentam as transferências.

Muitos caminhos

São várias as formas como os junguianos lidam e trabalham com a contratransferência. Muitos clássicos optam em suporta-la sem falar diretamente ou abertamente sobre a mesma. Muitas vezes, suprimindo as lacunas com a presença ativa através da autoexposição – que pode ser vista tanto de um aspecto positivo ou negativo (uma autoexposição neurótica, enfatizando o aspecto sombrio e impositivo do analista, e não o conteúdo simbólico da relação transferencial).

Com frequência, a autoexposição conscensiosa pode ser um instrumento simbólico importante na relação terapeutica, contudo, deve ser avaliada com atenção diante da relação transferencial para não ser uma atuação inconsciente diante dos conteúdos introjetados pelo analista.

Outra forma de trabalhar com a contratransferência, num processo contínuo é descrito por Nathan Schwartz-Salant como “visão imaginal” onde o analista compartilha a experiência simbólica das imagens interiores que emergem da contratransferência na relação terapêutica, de modo similar a uma imaginação ativa compartilhada com o paciente.

Sedgwicks (1999) dá uma sugestão de fases para se compreender e trabalhar com a contratransferência:

  • Preliminar : Se refere a formação, estudo, autoconhecimento do analista que possibilitará compreender o próprio processo e o processo do paciente.
  • “Limpando o campo”: consiste em se abrir para a experiência do inconsciente do paciente, sem julgamento , sem pressuposições acerca do paciente, permitindo que o conteúdo se manifeste.
  • Recepção: se refere ao acolhimento integral do paciente, isto é, uma atenção aos múltiplos processos do paciente – pensamentos, fantasias, estados de humor, expressões físicas e verbais etc. – que possam trazer reações do analista.
  • Seleção: consiste em selecionar, diante dos múltiplos estímulos, quais são mais pertinentes/relevantes à questão do paciente. E se manter na direção, percebendo o caminho que se contrói a partir das associações (tanto do paciente quanto do próprio analista).
  • Contenção: O analista serve de continente para os conteúdos do paciente. Esse processo pode se alongar, e o analista suportar e dar forma em si mesmo ao conteúdo do paciente.
  • Resolução: Consiste na forma ou meio que o analista utiliza para devolver ao paciente o conteúdo assimilado por este.
  • Incubação: após a devolução do conteúdo ao paciente, o analista deve aguardar, quase num estado de suspensão entre as interpretações e a compreensão do paciente sobre as mesmas.
  • Validação: é a fase onde se verificam as mudanças tanto em relação às percepções contratransferenciais, comportamentos e atitudes do paciente e também nas manifestações inconscientes, como os sonhos.

Essas etapas são didáticas e favorecem a reflexão acerca da importância da conscientização da contratransferência e de seu uso como fator fundamental para a construção do processo de mudança do paciente.

Refererências bibliográficas

JUNG, A Prática da Psicoterapia,Petrópolis: Vozes, 1999.

Fordham, M R. Gordon, J. Hubback and K. Lambert (eds), Technique in Jungian Analysis. London: Heinemann, 1974.

SEDGWICKS, D. The wounded Healer, Routledge: NewYork, 1999.

STEINBERG,W. Aspectos Clínicos da Terapia Junguiana, São Paulo: Cultrix, 1992.

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Fabricio Fonseca Moraes (CRP 16/1257)

Psicólogo Clínico Junguiano, Supervisor Clínico, Especialista em Teoria e Prática Junguiana(UVA/RJ), Especialista em Psicologia Clínica e da Família (Saberes, ES). Pós-graduando em Acupuntura Clássica Chinesa (IBEPA/FAISP). Formação em Hipnose Ericksoniana. Coordenador do “Grupo Aion – Estudos Junguianos” Atua em consultório particular em Vitória desde 2003.

Contato: 27 – 99316-6985. / e-mail: fabriciomoraes@yahoo.com.br/ Twitter:@FabricioMoraes /Instagram @fabriciomoraes.psi

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