Jung e a Medicina Chinesa (p.2): A perspectiva energética

No post anterior fizemos uma introdução à um possível dialogo entre o pensamento junguiano e a medicina chinesa. Estamos trilhando um caminho de construção de percepção de psicossomática junguiana associada à medicina chinesa. Neste post, eu gostaria de abordar um aspecto funcional importante tanto da psicologia analítica quanto da medicina chinesa que envolve a dinâmica dos processos vitais – no caso da psicologia analítica a energia psiquica e da medicina chinesa com teoria do Yin e Yang e a noção de Qi. No próximo texto pensaremos outro aspecto importante que é a teoria dos 5 movimentos (Wu Xing).

Um ponto de vista energético

O Conceito de Energia Psíquica ou de libido encontra-se na base das abordagens psicodinâmicas em psicologia. A noção de “energia psíquica” tem inicio com Freud, surgindo como uma proposta para explicar os processos de investimentos nos objetos, contudo essa energia possuía um caráter predominantemente sexual (ou associado a sexualidade). Esse determinismo foi um dos pontos fundamentais para a ruptura do Jung com o Freud. Desde 1912 Jung apontava a necessidade de compreender a libido sob um ponto de vista energético, passível de várias transformações/manifestações.

Contudo, somente em 1928 Jung deu um aspecto organizado em sua teoria da libido com o texto “A Energia Psíquica” – texto este destacar dois aspectos fundamentais: a dinâmica da energia e a função dos símbolos.

Jung considerava a psique como um sistema relativamente fechado, para explicar a dinâmica ou movimento da energia ele utilizou aproximou de conceitos/princípios da termodinâmica como o princípios da conservação da energia, de equivalência e constância, O princípio de equivalência indica

“que, para qualquer quantidade de energia utilizada em um ponto qualquer, para se produzir uma determinada condição, surge em outro ponto igual quantidade dessa mesma ou de outra forma de energia”. O princípio da constância, pelo contrário, indica “que a energia total permanece sempre igual a si mesma, sendo, por conseguinte, incapaz de aumentar ou de diminuir”(JUNG, 1999, p17)

Por outro lado, apontava o princípio de entropia onde as variações e transformações da energia atingiram um equilíbrio dinâmico. No modelo teórico, Jung se referia aos processos psíquicos conscientes e inconscientes. É importante notar, que Jung se referia a energia psíquica, mas não a restringia exclusivamente ao processo psíquico, devemos lembrar que no início de suas pesquisas com associações de palavras Jung observou que havia mudanças somáticas imediatas frente às palavras estímulo, deste modo, se estende a relação corpo e psique, visto que os aspectos não simbolizados (isto é, não acessíveis à consciência) tendem a ser expressados somaticamente.

Jung compreendeu que os símbolos eram extremamente importantes para compreender a dinâmica da psique, pois os símbolos seriam a própria energia psíquica manifesta como representação na consciência. Assim, símbolos como um “análogo” da energia seriam “transformadores de energia” por possibilitarem que a energia transitasse e assumisse novas formas e manifestações. Os símbolos poderiam ser imagens, gestos, sensações, atos rituais etc.

Os processos simbólicos integram realidades aparentemente distintas como consciente-inconsciente; corpo-psique, individuo-coletivo, organismo-ambiente. Os símbolos seriam melhores aproximações possíveis à realidade que é intangível, nesse sentido, os símbolos se expressam em metáforas, em analogias que canalizam a libido.

Em tudo o que acontece no mundo, vejo o jogo dos opostos e dessa concepção derivo minha idéia de energia psíquica. Acho que a energia psíquica envolve o jogo dos opostos de modo semelhante como a energia física envolve uma diferença de potencial, isto é, a existência de opostos como calor-frio, alto-baixo etc. Freud começou por considerar como única força propulsora psíquica a sexualidade e, somente após minha ruptura com ele, levou também outros fatores em consideração. Eu, porém, reuni os diversos impulsos ou forças psíquicas — todos constituídos mais ou menos ad hoc — sob o conceito de energia fim de eliminar a arbitrariedade quase inevitável de uma psicologia que lida exclusivamente com a força. Portanto, já não falo de forças ou de impulsos individuais, mas de “intensidades de valores” (Jung, 1989, 327)

A concepção energética de Jung não era de uma rigidez baseada na concepção da física, como vemos, é baseada numa compreensão dos processos psíquicos como correlacionados à visão de mundo e da natureza. Essa noção dialoga bem aproximada das noções de yin e yang e do Qi.

Castles in the Air: Yin-Yang Animation

A Teoria do Yin e do Yang

Dos conceitos chineses talvez nenhum seja tão conhecido ao ocidente quanto os de Yin e o Yang.

A noção de Yin e Yang derivam da observação da natureza, dos ciclos e transição. Um exemplo comum é a observação de uma montanha, que pela manhã um lado é lado iluminado e outro sombreado, e a tarde. Do mesmo modo, a transição das estações, ciclo diurno.

A partir de um significado primário, a vertente da sombra, o lado sombreado da montanha e a vertente ensolarada, o lado ensolarado da montanha, yin e yang foram usados para se referir ao frio que reina na sombra e ao calor que faz quando há sol; depois para os princípios do calor e do aqueci mento, do frio e do esfriamento, observáveis no decorrer das estações, para finalmente representar o duplo aspecto do sopro (qi) indissociavelmente presente em todo fenômeno nos seus aspectos opostos e complementares. O yin é então o princípio da sombra, do frio, da feminilidade, que convida à retirada, ao repouso, até mesmo à passividade; e o yang, o princípio da luz, do calor, da masculinidade, que convida à expansão das energias, à atividade, até mesmo à agressividade. A serenidade tranquila mantém a vida na harmoniosa composição de ambos; a imobilidade, inerte e rígida. anuncia a morte; a agitação febril leva à morte. (VALLEE, 2019.p14)

Não existe Yin sem Yang. ambos são polaridades que se criam e se sustentam mutuamente. constituem elementos que se definem e possibilitam a realidade. Com frequência vemos expressos apenas em fenômenos naturais como:

YinYang
NegativoPositivo
TerraCéu
PassivoAtivo
LuaSol
IntuiçãoLógica
FrioCalor
ConcentraçãoExpansão
FemininoMasculino

Essas manifestações exprimem a predominância ou Yin ou Yang, que qualificam e sustentam os fenômenos. O Yin é que se manifesta na densidade o Yang se manifesta no sutil – por isso um tende a configuração (ou forma) o outro ao movimento (função). Essas categorias quanto quando aplicadas aos processos de saúde e doença ficam mais claros de se perceber.

YINYANG
SinaisSintomas
Doença crônicadoença aguda
início gradualinicio rápido
evolução lenta do quadroevolução rápida do quadro
FrioCalor
apatia, sonolência,agitação, insônia
face pálidarubor facial
deita-se encolhidodeita-se esticado
voz fraca – falar poucovoz alta – falar muito
respiração lenta e superficialDispnéia
ausência de sedeSede
urina profusa e claraurina escassa e escura
DiarreiaConstipação
língua pálida – saburra brancalíngua vermelha – saburra amarela
pulso vaziopulso cheio
InternoExterno
FrenteCostas

A relação entre o Yin e o Yang se dá num processo de oposição, interdependência e transformação. Auteroche demonstra bem essa relação do Yin e Yang, dizendo

(…) A este respeito, o Su Wen diz: “o Yin está no interior, é o sustentador do Yang, o Yang está no exterior, é o enviado do Yin”.

Esta frase, chave da relação de interdependência entre o Yin e o Yang, tem o seguinte significado: “O Yin determina a matéria, portanto, a substância do corpo humano, o que está no interior. O Yang é a função, o que se manifesta exteriormente. O Yin é a base material da capacidade de funcionar, é a esse título que é o sustentador do Yang. O Yang é a manifestação, no exterior, do movimento da matéria interna, de onde pode ser chamado o enviado do Yin. (AUTEROCHE et NAVAILH, 1992, p.15)

O equilíbrio entre Yin e o Yang possibilita a saúde, mas não deve ser pensada apenas no âmbito “interno” do corpo e dos órgãos. Esse equilíbrio deve ser compreendido ampla e sistemicamente que integra todas áreas de nossa vida, envolvendo desde nossa postura corporal, atitude, comportamentos, hábitos, alimentação, lazer, descanso/sono, relacionamentos interpessoais.

O Qi

O conceito de Qi, que também é grafado como Chi ou Ki, pode ser traduzido sopro, energia vital, força vital, energia universal dentre outros. O Qi é a substância que atravessa tudo que existe, é essencialmente neutro. Pode estar associado ao Yin ou ao Yang, que vai ser qualificado por essa relação.

O Qi está presente em toda experiência, em todas as funções da vida. Em nosso organismo o Qi assume funções diferentes como movimento, regulação da temperatura corporal, proteção, atividade de controle ( suor, sangue, etc), transformação. Cada órgão exercerá suas funções de acordo com o Qi – os estados patológicos seriam a deficiência, a estagnação ou o excesso.

O Qi e o Yin e o Yang são grandezas que sempre estão conectadas, fundamentais para manutenção de toda forma de vida.

Paralelos

Através do conceito de energia psíquica, Jung compreendia a dinâmica da vida. Devemos lembrar que o texto da “Energia Psíquica” foi concebido antes dos desenvolvimentos na teoria junguiana que envolveu o conceito de sincronicidade – que não só fala de eventos acausais, mas também de uma realidade integrada, una ( o “unus mundus” dos alquimistas). Essa compreensão aproxima a visão de realidade integrada no pensamento chinês.

A noção de energia/libido assim como de Yin/Yang/Qi são categorias que nos possibilitam pensar os processos de homeostase, saúde e doença. Os processos de transformação da energia – entre a consciência e inconsciente, psique e corpo, individuo e coletivo. Pois, quando consideramos em lato sensu, é a mesma energia que sustenta o corpo e a psique. Os simbolos atuam tanto no corpo quanto na psique como Jung apontou na constelação dos complexos e como vemos nos fenômenos hipnóticos e nas curas magico-religiosas.

O movimento/fluxo equilibrado e transformação da energia são necessários para a vida. No trabalho com sonhos, na imaginação ativa, no trabalho imagens/símbolos no sandplay, na sugestão de atividades/tarefas de casa há a mobilização e transformação da energia. Os chineses mobilizavam a energia principalmente pelo Qi Gong e Acupuntura – mas também pelas práticas terapêuticas de Tui-na, dietoterapia e fitoterapia.

No próximo post pretendo abordar um pouco da teoria do Wu Xing (cinco movimentos) pensando associando com a teoria dos Zang Fu (orgãos e vísceras) correlacionando com as emoções seguino no caminho que estamos traçando em direção a uma possibilidade de pensar a psicossomática junguiana associada aos conhecimentos da medicina chinesa.


Referencias Bibliográficas

AUTEROCHE B;  NAVAILH P: O Diagnóstico na Medicina Chinesa. São Paulo: Organização Andrei Editora, 1992.

JUNG, C.G. A Energia Psiquica, Petropolis:Vozes, 1999.

JUNG, C.G. Freud e a Psicanálise, Petropolis:Vozes, 1989.

VALLEE, E. R. de La, Os 101 Conceitos-Chave da Medicina Chinesa, São Paulo, SP: Ed. Inserir, 2019.

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Fabricio Fonseca Moraes (CRP 16/1257)

Psicólogo Clínico Junguiano, Supervisor Clínico, Especialista em Teoria e Prática Junguiana(UVA/RJ), Especialista em Psicologia Clínica e da Família (Saberes, ES). Pós-graduando em Acupuntura Clássica Chinesa (IBEPA/FAISP). Formação em Hipnose Ericksoniana. Coordenador do “Grupo Aion – Estudos Junguianos” Atua em consultório particular em Vitória desde 2003.

Contato: 27 – 9316-6985. / e-mail: fabriciomoraes@yahoo.com.br/ Twitter:@FabricioMoraes /Instagram @fabriciomoraes.psi

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